Na última sexta-feira, dia 01/07 fui, com outros professores, acompanhar um grupo de alunos do Colégio Maria Raythe a um passeio à Academia Brasileira de Letras (ABL). A expectativa era a de uma agradável visita a esta simpática instituição de nosso país que, de acordo com o artigo 1º de seu estatuto, ”tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional”. Apesar de minhas ressalvas às visitas guiadas – muitas vezes enfadonhas e cheias de textos decorados e cuspidos diante dos alunos como palavras vazias jogadas ao vento – pairava sobre minha cabeça a ideia de que os alunos sairiam da visita com um interesse maior pela cultura literária. Ao final da visita, esta ideia mostrou-se ingênua e inteiramente equivocada.
Assim que chegamos, fomos bem recebidos pela equipe que nos guiaria pela visita. A responsável pelas visitas, Terezinha, mostrou-se, a princípio, bastante simpática comigo, e imaginei que tudo transcorreria sem maiores problemas. No entanto, bastou o início da palestra dos guias para começar a sentir algo de estranho no ar. Semblantes fechados, pedidos aos professores para que “controlassem” seus alunos e reprimendas deixaram, antes mesmo de nossa entrada no Petit Trianon, o ambiente tenso.
Assim que entramos no palácio teve início a apresentação teatral por meio da qual o espaço e a história da ABL nos seriam apresentados. Dois atores e uma atriz (belíssima, por sinal) cantaram músicas – ou poemas musicados – de autoria dos acadêmicos, informaram-nos sobre pequenos e divertidos incidentes entre eles e expuseram, através de um texto dinâmico e leve, os principais traços da Academia. Até aí, uma surpreendentemente boa visita guiada.
O problema é que tanto a responsável pela visita quanto os atores/guias e até mesmo os seguranças (em número inimaginável) não perderam nenhuma oportunidade de mostrarem-se grosseiros e indelicados com os alunos e, de modo geral, os visitantes. Sempre me incomodou a postura de alguns indivíduos e de algumas instituições culturais que se colocam num pedestal sagrado e passam a tratar o restante dos seres humanos como miseráveis incultos mendicantes de um pouco de “cultura”.
Aliás, eis uma palavrinha complicada... cultura. Sem querer entrar em discussões intermináveis sobre o conceito, não poderia deixar de tecer alguns comentários sobre o mesmo. Cultura não é uma coisa que algum indivíduo ou instituição de grande benevolência pode doar do alto de sua magnanimidade aos bárbaros que não a possuem. Todos os seres humanos que crescem fazendo parte de um grupo têm cultura. Um aborígene australiano do século XVII, uma socialite americana do século XXI e um monge erudito do século XV têm cultura. Aliás o homem já foi definido, pelo filósofo David Hume, como animal cultural.
Pois bem, esta não parece ser a noção de cultura partilhada pelos funcionários da ABL que nos guiaram. Para eles a cultura é algo mágico, esotérico, que alguns escolhidos (eles) possuem e outros (nós, seres obviamente inferiores) devem curvar-se para receber em doses homeopáticas numa espécie de ritual sagrado. E o que difere os “donos da cultura” dos “bárbaros mendicantes”? As palavras mágicas. “Machado de Assis”, “Rachel de Queiroz”, “Araripe Júnior”, “Graça Aranha” e até mesmo - pasmem! – “Roberto Marinho” e “José Sarney”. É o fato de pronunciarem estas palavras mágicas que diferenciam os iluminados funcionários da ABL – estes eruditos da decoreba – de nós, os sem cultura.
Mas o pior não é essa brilhante teoria – insustentável diante de qualquer indivíduo que possua suas faculdades intelectuais não comprometidas por qualquer doença degenerativa –, o pior é a sua conseqüência. Os donos da cultura arrogam para si o direito – eu diria o dever – de usarem todo e qualquer tipo de ameaça, constrangimento e desrespeito para que o ritual místico da doação de cultura não se contamine com qualquer tipo de emoção. Exclamações, risos, olhares de surpresa ou de curiosidade estão expressamente proibidos no ritual. Adolescentes curiosos devem se transformar em múmias paralíticas; jovens excitados devem tornar-se zumbis; professores interessados devem se converter em policiais. Todos devem abaixar suas cabeças como cordeiros para receberem a dádiva que lhes é ofertada. Talvez o escritor mais amado por nossos guias – se é que eles conhecem algum – não esteja na Academia Brasileira de Letras. Trata-se de um autor nascido na distante Bombaim: Rudyard Kipling, aquele do “fardo do homem branco”.
A nota positiva da visita ficou por conta do único Acadêmico com o qual pudemos travar contato. Atendendo a um pedido meu, que fui seu aluno há alguns anos atrás no curso de História da UFRJ, o professor José Murilo de Carvalho gentilmente se dispôs a, entre uma reunião e outra, conversar por alguns minutos conosco. Sua cortesia, respeito e atenção - e até mesmo sua fala mansa e baixa – contrastaram profundamente com a deselegância, desrespeito e arrogância dos funcionários da instituição. Ficou a impressão de que os acadêmicos estão muito mal representados por aqueles que lidam diretamente com o público desejoso de conhecer um pouco da ABL.
Ao final da visita, um misto de decepção, tristeza e indignação foi o que ficou. Indignação pelo desrespeito aos seres humanos que abriram mão de seu tempo livre numa tarde de sexta-feira para conhecer uma instituição e voltaram para casa cheios de vitupérios na bagagem. Tristeza por ver um trabalho até bem feito (quero lembrar que elogiei o texto e a encenação dos atores durante a visita) jogado por água abaixo em função da grosseria de pessoas sem o menor preparo para lidar com outras pessoas. Decepção porque tenho a convicção de que toda vez que os alunos passarem os olhos sobre o livro de algum Acadêmico, não sentirão simpatia e nem interesse em abri-lo. Antes disso, lembrarão dos insultos que sofreram durante a traumatizante visita. Ao invés de mais próximos, esses adolescentes estão, nesse exato momento, mais distantes da “cultura da língua e da literatura nacional” que a ABL deveria, de acordo com seu próprio estatuto, promover.
No Brasil estudar parece uma coisa muito grande, não é? Quem detem algum tipo de conhecimento, frequentemente, age com arrogância. Isso diz muito sobre nós, eu acho. É uma demonstração de que as "culturas" vai continuar cada uma em seu lugar, os alunos com as deles e a ABL com a dela. José Murilo (o único que poderia ser arrogante ali) certamente tende para os alunos.
ResponderExcluirMas um questionamento: Já parou pra pensar que os seguranças não devem entender nada do que se passa ali? Ai ai...
*vão
ResponderExcluirNinguém entende nada, mas todos posam de baluartes da cultura letrada.
ResponderExcluirArthur voce esqueceu de fala que a LINDA atriz não foi arrogante
ResponderExcluirÉ verdade. Um esquecimento imperdoável...
ResponderExcluirEsse texto me "forneceu mais cultura" do que quase o passeio inteiro!
ResponderExcluirEu sai de lá cheia de dúvidas ainda!! tirando 2 pessoas de la, o restante foi todo mundo arrogante!! só nao foram também o pessoal do teatro!
ResponderExcluirArthur,
ResponderExcluiré isso mesmo: quando a cultura vira um ritual de adoração e os fatos/objetos culturais tornam-se ícones e/ou ídolos a serem adorados não existe verdadeiro diálogo ou compartihamento genuíno...
Abraços!